O COLIBRI

​Soaria estranho afirmar que se visse um colibri, mesmo que fosse um simples desenho, os sentimentos que afloravam eram negativos?
​Pois esta passagem justificará o que afirmei.
​Não completara ainda dez anos de idade quando fomos passar um feriado prolongado em um hotel no interior do Estado de São Paulo.
​Para mim, que, nas férias, só conhecia a praia de São Lourenço, em Bertioga,deixar o mar para descobrir o campo seria como conquistar um novo mundo, algo mágico, e tão desafiador quanto as aventuras do meu melhor amigo, o Pedrinho do Sítio do Picapau Amarelo.
E quando pensamos nesse tipo de refúgio, hoje chamado hotel fazenda, logo nos vêm à mente os seus múltiplos atrativos. Assim, não é incomum oferecerem a tirolesa, o arborismo, o arco e flecha, o tiro ao alvo, a piscina fria com tobogã, e a aquecida, além de uma equipe de monitores extremamente pacientes – leia-se: a um passo da santificação!
Mas você acha que todas essas comodidades existiam há mais de quarenta anos? É claro que não.
O que havia era um pequeno lago com lambaris, alguns caniços à nossa disposição – as iscas eram minhocas que tínhamos que desenterrar por conta própria –, uma sala de jogos, com pebolim e pingue-pongue, e alguns cavalos (nada alazões) que poderíamos alugar, incluindo a charrete.
​No entanto, tudo era novidade, que precisava ser experimentada e a que me entregava com redobrada alegria.
​A comida era boa e farta, dois requisitos imprescindíveis àqueles que, como eu, sempre se consideraram um bom garfo.
Por óbvio que não éramos os únicos hóspedes. Daí que havia outras crianças com quem interagir. E não demorou muito para que delas me aproximasse.
Só que um dos garotos, o mais velho, resolveu levar para o hotel, certamente com o consentimento dos pais, o seu mais novo brinquedo.
Não pense que se tratava de um caríssimo rádio comunicador, o saudoso WalkieTalkie, ou de uma bola de capotão que, nunca estreada, aumentaria o convívio entre os meninos. Antes fosse!
O que ele desfilava, e atraía a curiosidade das crianças, era uma lustrosa e intimidadora espingardinha de chumbo.
Pois bem, enquanto aquele garoto atirava a esmo, fazendo das folhas, dos gravetos e dos pedregulhos os seus alvos, não só nos alegrávamos, como, também, torcíamos para que acertasse cada vez mais. E, com efeito, ele tinha uma excelente mira! – Eu estava louco para apertar o gatilho. Mas nenhum de nós teve coragem de pedir a espingardinha emprestada.
Quando, porém, o dono da arma resolveu partir para as flores, confesso que não fiquei muito contente. E até houve quem reclamasse; se bem que a baixíssima voz.
O problema foi que o garoto também se cansou das flores.
E depois de varrer o local à procura de um alvo incomum, algo que realmente odesafiasse, seus olhos acabaram encontrando um colibri que por ali voava.
Ele não comentou com ninguém sobre a nova escolha. Apenas esperou que o passarinho pousasse, fez pontaria, e atirou.
Só ouvimos o seu “Acertei!”, e acompanhamos com os olhos a queda da avezinha.
Todos corremos para o local.
Percebemos que o colibri agonizava, pois o chumbinho não o acertara em cheio.
E sobrevieram os choros, os protestos e as ameaças. E tantas foram as reações, e cada vez mais enérgicas, que não apenas o autor do disparo passou de orgulhoso a amuado, como, também, alguns pais que estavam próximos acabaram sendo atraídos.
Uma das crianças, na tentativa ingênua de ajudar, segurava o colibri nas mãos, falava com ele, e assoprava a sua cabecinha. Mas ele morreria pouco depois.
Os pais do atirador chegaram em seguida.
Não lhe deram palmadas; sequer o repreenderam! Mas confiscaram a espingarda e mantiveram-se isolados pelo resto do feriado.
O período de descanso terminou e retornamos para casa.
Só não sabia que levara comigo uma persistente recordação...
Assim, toda vez que via um colibri, mesmo que impresso em papel! aquela cena fatídica ressurgia. E lá vinham a tristeza, a dó, a revolta.
Esse trauma perdurou por longos anos.
Menos mal que não me faltou a ajuda terapêutica de que tanto carecia.
E como o tempo também é um excelente psicólogo, o trauma foi se diluindo, diluindo... e deixou de me atormentar.
Daí que hoje, quando vejo um colibri, seja real ou gravura, os sentimentos queme vêm nada têm de negativos.
E tanto isso é verdade, que bastou receber o convite para este concurso literárioque o meu espírito encheu-se de alegria, criatividade, otimismo!
E por quê?
Ora, amigo leitor, quem não sabe que a ALPAS Internacional 21 escolheu,justamente, o colibri como símbolo?

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