Preferir A Dúvida Ou A Verdade?

Felipe e Tadeu tornaram-se amigos há quase dois anos, quando começaram a trabalhar como gerentes em uma empresa de telecomunicações.
Como suas esposas faziam juntas aula de Pilates todas as sextas-feiras, como essa atividade coincidia com o happy hour, e como o trânsito nesses dia e horário sempre foi desencorajador, os colegas viam-se obrigados a aguardar o melhor momento para voltarem às suas casas, o que os estimulava a se dedicarem ao graves problemas existenciais, todos meticulosamente discutidos em um barzinho próximo ao trabalho.
Só que o encontro desta sexta-feira seria um tanto diferente…
Sem que um suspeitasse da intenção do outro – e que eram idênticas –, Felipe e Tadeu pretendiam trazer ao debate um assunto que a ambos incomodava, mas que muito os encabulava.
Ora, para chegarem aonde pretendiam, seria preciso, primeiro, que a discussão tivesse início, que temas fossem levantados.
Daí que Felipe, estimulado pela primeira tulipa e buscando conduzir o raciocínio do amigo, apresentou uma questão muito interessante, fruto de universal inquietude.
Queria saber se algum dia Tadeu já tinha visto a tal da brigada de incêndio que vivem noticiando nos cinemas dos shoppings.
Por óbvio que o colega respondeu que não.
Diante desse laconismo, e porque esperasse uma resposta mais alongada e espirituosa com que pudesse continuar guiando os pensamentos do colega, Felipe tratou de pôr fermento àquele tema.
E perguntou se ocorresse, de verdade, um incêndio no cinema, a brigada apareceria com a presteza, a braçadeira, e a eficácia com que é anunciada.
Tadeu engoliu o chope de vagar, colocou a tulipa sobre a mesa, e respondeu muito mais do que ele imaginava ouvir.
Disse que essa era o tipo de situação em que, por motivos óbvios (nada empíricos), seria inevitável preferir-se a dúvida à verdade – Tão logo falou, Tadeu também percebia que este seria um bom caminho para que pudesse trazer à tona aquele assunto incômodo.
Como Felipe foi o primeiro a dar um exemplo, Tadeu tomou a palavra.
E mantendo-se fiel ao caminho que seguiam – inevitável preferência da dúvida à verdade –, Tadeu afrouxou a gravata e relembrou uma história familiar que acontecera há algumas décadas.
O aniversário de quatro anos de sua prima estava próximo.
A garotinha insistia aos pais para que comprassem um bicho de estimação.
Cansados de tanta insistência, a aniversariante acabou ganhando um lindo coelhinho.
O bichinho, que logo se tornou o seu xodó, gozaria da mais ampla liberdade, sendo que a menina só admitia que o pusessem na gaiola na hora da naninha ou quando fossem viajar.
No entanto, seja por não se contentar com a comida que recebia, seja por sentir falta de uma boa toca em que pudesse relaxar, seja, enfim, para se ver livre dos desmesurados carinhos que recebia de sua dona, Pompom – era esse o nome que ela escolheu – passou a imprimir a sua terrível marca nos móveis da casa, sobretudo nos sofás.
Essas roeduras e buracos, aliados às muitas bolotinhas que se descobriam espalhadas pelos quatro cantos da casa, fizeram com que os pais da pequenina se arrependessem amargamente do dia em que bateram os olhos naquela nefasta criatura.
Diante disso, tomaram uma dolorosa, oculta e necessária decisão.
Esperaram um feriado prolongado, e partiram todos para Ubatuba, para a casa dos avós maternos, onde, sem que pudessem evitar, Pompom “fugiria” para nunca mais voltar.
Ocorre que – continuava Tadeu –, antes dessa empreitada se consumar, a avó, que já ficara a par de todos aqueles inconvenientes, bem como do consensual plano da “fuga”, imaginou uma solução muito mais vantajosa. Afinal, sumido por sumido, que se tirasse algum proveito.
Sendo assim, todos se surpreenderam com a notícia de que o cardápio do jantar tinha sido mudado, o que acarretou compreensivos e enfáticos protestos por parte da única neta, uma vez que não mais se deliciaria com os apetitosos hambúrgueres.
Mas a situação foi logo contornada, pois a avó esclareceu à birrenta da neta que os seus hambúrgueres estavam a salvo.
Para os adultos, porém, seria servido um saboroso guisado…
Se bem que filha e genro acabaram perdendo a fome logo que relacionaram a marcante textura da carne com a providencial ausência de Pompom, o apetite dos avós aumentava a cada mastigada, tanto que repetiram o prato.
Para que o trauma com o sumiço do roedor não fosse elevado à enésima potência, a criança cresceu sustentando-se na versão de que Pompom teria escapado da gaiola – que não fora devidamente fechada, depois que trocaram a ração –, e fugido para a rua, através da portinhola de que se valia o falecido gato do casal.
E se por vezes esse nebuloso episódio vem a ser ressuscitado em alguma reunião familiar por um ou outro primo sacana e desalmado, aquela garotinha, agora mulher feita, é a primeira a fechar os ouvidos, e a única a não abandonar aquela duvidosa versão oficial.
Com efeito – arrematou Felipe –, é forçoso preferir a dúvida à verdade.
Depois de alguns vaivéns, em que os amigos expuseram curiosos exemplos dessa inevitável preferência, Felipe começou a pensar que, caso se mantivessem nessa direção, a atmosfera ainda não seria propícia para que aquele desconfortável problema fosse levantado, uma vez que vislumbrava uma outra faceta sua, e que precisava ser explorada.
Daí que pensou em abordar justamente a hipótese contrária. E para isto, alterou o tom e mudou de postura, de brincalhão para sério.
Afirmou que, às vezes, preferir a verdade à dúvida é, forçosamente, a única hipótese possível.
E lembrou que conheceu um sujeito há alguns anos que, muito embora já tivesse alcançado os cinquenta, optou não fazer o exame de toque porque tinha pavor de se descobrir com câncer de próstata.
É claro que – prosseguiu Felipe – as pessoas que o amavam não se cansavam de adverti-lo sobre os perigos da sua covardia. E tanto insistiram, que, seja porque não mais aguentasse ouvir a mesma cantilena, seja porque o amor pela vida falasse mais alto, esse sujeito acabou criando coragem, fez o exame, e, graças a Deus, verificou estar saudável.
Depois que brindaram à sensatez, Tadeu se pôs a narrar.
Disse que um casal de amigos tinha decidido adotar uma criança, pois o marido descobriu que não poderia ter filhos.
Só que queriam escolher um bebê que se parecesse com eles – mesma cor da pele, mesmo tipo de cabelo… –, não só porque o amor que sentiam não era tão abnegado assim, mas, também, porque tinham muito medo de que o recém-nascido, crescendo, entrasse em parafuso quando, apontado por coleguinhas, começasse a notar que ele e seus pais não tinham lá muitas semelhanças.
Ora, imagina o estrago que a dúvida poderia acarretar àquela personalidade em formação, se seus pais permanecessem inflexíveis quanto ao segredo da adoção?
Menos mal que Tadeu terminava a sua história dizendo que aqueles pais também tiveram os olhos abertos por amigos, o que permitiu vissem o erro em que se encontravam, e decidissem contar a verdade para o filho, da maneira a mais natural possível e assim que adquirisse suficiente compreensão.
Com efeito – arrematou novamente Felipe –, é fatal preferir a verdade à dúvida.
Outros exemplos foram narrados, ainda nessa mesma linha, até que o diálogo começou a esfriar…
E não porque o horário os coagisse a retornar para os respectivos lares, muito menos porque faltasse aos debatedores ânimo para prosseguirem.
Na realidade, os dois constatavam que em todos os exemplos até então colocados não havia espaço para a indecisão. Em outras palavras, ou a hipótese só admitia a preferência pela dúvida, ou, pela verdade.
Mas com relação ao assunto que gostariam de tratar, ambos concluíam, e com pesar, que a indecisão gozava, sim, de um tremendo espaço. Portanto, continuavam sem saber o que prefeririam, se a dúvida, ou, a verdade.
Fosse como fosse, os segundos de silêncio se multiplicavam, e os nós que se instalaram em suas gargantas só faziam aumentar.
Até que Tadeu, cansando-se do impasse, esvaziou a tulipa – ganhando coragem –, bateu-a sobre a mesa, e resolveu levantar aquele tema inconfortável.
Começou com a conhecida fórmula de que tinha um amigo…
Esse amigo era casado há vários anos com uma linda mulher. Ele sempre a amou, e desse amor nasceram filhos.
Felipe, que frisara as sobrancelhas, era só ouvidos…
Mas em momentos distintos, e por motivos que não vinham ao caso, esse amigo teve mais de uma impressão de que seu único amor o estaria traindo.
O ouvinte engolia a saliva…
E depois de enfatizar que aquele amigo amava profundamente a esposa, de ressaltar que ele não suportaria viver sem ela, e de destacar a causticante indecisão que o afligia, sobre o que deveria ou não fazer – preferir a dúvida ou a verdade –, Tadeu, dando um breve intervalo à sua fala, jogou a bola para Felipe, e aguardou que opinasse.
Nesse passo, convém frisar que, se as intenções eram idênticas – trazer à tona o tema traição –, somente Tadeu denunciara ter sido traído.
Mas, e Felipe?
Será que Felipe também desconfiava da esposa, e, por isso, buscava em Tadeu um conselho sobre o que preferir, a dúvida ou a verdade? Ou será que, conforme pendesse Tadeu para um ou outro extremo, Felipe, corroído pelo remorso, teria forças para confessar-se “o outro”?
Bem, quando Felipe começou a gaguejar, o celular de Tadeu tocou – sua esposa, saudosa e alvoroçada, reclamava a sua presença em casa, com urgência.
Talvez continuassem esse assunto na próxima sexta. Talvez o esquecessem ou o substituíssem por outros mais intrigantes…
Seja como for, e já que sobram opiniões, o que você preferiria nesse último caso, a dúvida ou a verdade?
Dias Campos
diascampos1@gmail.com

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