Monteiro Lobato Deve Permanecer Intocável


É uma grande honra e um prazer maior ainda ter sido convidado para pertencer a este seleto grupo, “Os Filhos de Lobato”.
De antemão, quero dizer que aplaudo Paulo Penteado por transcrever o texto de Jose Roberto Whitaker Penteado – com que concordo em gênero e número – publicado em O Estado de São Paulo, no Caderno Aliás, p. E2, em 17/02/19.
E já que no mesmo Caderno e página Antonio Gonçalves Filho também publicou “O ‘sítio sob ameaça de intervenção” – com que também concordo em gênero e número -, em que cita “… a amiga Rã (inspirada numa garota carioca, Maria de Lurdes)…”, aproveito para reapresentar o meu conto “A menina rã”, que ofereço a todos deste grupo, e por meio do qual louvo o nosso sempre Monteiro Lobato:
A menina rã.
“- A menina rã te mostrará o caminho.”
Essa profecia Pedro Henrique ouviu na pré-adolescência, quando toda a parentela passava férias em uma estância hidromineral. Levados pela natural curiosidade, ele e duas primas acabaram entregando suas mãos para uma cigana que por lá buscava clientela. As leituras começaram pelas garotas, e os sorrisos não puderam ser contidos.
É claro que Pedro Henrique mal continha a expectativa, pois nessa fase da vida, sejamos homens ou mulheres, o que mais queremos ouvir, e com entonação de certeza, é a previsão de que casaremos com a pessoa que idealizamos ser a nossa alma gêmea. Ora, a sua vez era chegada; e ele era todo ouvidos.
Mas quando a leitora da buena-dicha fixou a palma do apaixonado, seu semblante, ladino que fosse, não conseguiu disfarçar o estranhamento de que se apossou. Era difícil acreditar no que via, e, mais ainda, de interpretar-lhe o significado. Afinal, pensava consigo, até as profecias precisam ser um pouco críveis.
Esse contratempo não foi suficiente para que a negociante de devaneios deixasse de cumprir o seu ofício. E logo a torneira da ilusão vertia profusa o líquido do agrado. Aliás, a continuar nesse ritmo, e a loirinha por quem o ouvinte suspirava já lhe seria esposa muito antes da idade nupcial.
Acontece que aquela primeira predição teimava em reaparecer, e a profissional da ilusão começou a gaguejar. De repente, um silêncio desconcertante pairou acima de tão belas revelações.
– E isso vai demorar pra acontecer? – Perguntou Pedro Henrique, envolto na ansiedade.
– O quê?…
– Quero saber se vai demorar muito pra eu casar com a Paula.
– Não, não… Só que…
– O que foi? – E as primas se lhe seguiam em curiosidade.
– Sabe, garoto, eu preciso contar o que vi, o que estou vendo.
– Fala, pode falar.
Por óbvio que ninguém entendeu o significado daquela antevisão surreal. E nem é preciso dizer que a menina rã de Pedro Henrique foi o tema predileto de suas primas pelo restante do dia. Até porque, como não fosse difícil toparem com um desses batráquios nos jardins da pousada em que se tinham hospedado, haja vista as chuvas que caíram naquele mês, era saírem gritando de medo para, em seguida, levarem o primo à presença do futuro cupido. E caíam na gargalhada.
A propósito, como desgraça pouca é bobagem, adivinhe-se qual foi o tira-gosto que pediram no restaurante da cidade nessa mesma noite? Pois é, à exceção do homenageado, que ficou bastante emburrado, toda a família se fartou de comer coxas de rã empanadas.
Terminadas as férias, nem por isso Pedro Henrique se livrou do esdrúxulo augúrio. E suas primas, que estudavam no mesmo colégio, bem souberam espalhá-lo aos quatro ventos. Com isso, o fato, de simples brincadeira, ganhou contornos de bullying, impondo ao estudante não só o ato extremo de mudança de escola, como também um custoso e demorado acompanhamento psicológico.
Mas o tempo, lenitivo silencioso e eficaz, soube esperar que a força interior de Pedro Henrique desabrochasse, o que fez dormir o garoto traumatizado e de poucos atrativos, e permitiu acordar um adolescente extrovertido e muito sedutor, em que pesem algumas espinhas. E, seja dito de passagem, essa transformação não passou despercebida de suas primas, em cujos sonhos ele apareceu mais de uma vez.
Nesse período, a juventude, houve um episódio que merece ser apontado. Por motivos que só o tarô poderia explicar, tornava ao convívio escolar de Pedro Henrique aquela mesma loirinha por quem um dia suspirara. Paula contava dezessete anos, coroados com os mais belos atrativos que uma mulher poderia desejar. Por isso, não houve quem não a notasse assim que entrou na sala de aula, novidade essa realçada pelo fato de ter chegado atrasada.
Mas foi no intervalo, quando os olhos azuis-celestes da novata varriam acanhados a classe à procura de aceitação, que o passado ressurgiu acolhedor e à distância de poucas carteiras. Coube, porém, a Pedro Henrique tomar a iniciativa. E ele se levantou e caminhou em sua direção. Levava consigo um sorriso infantil, fruto da doce lembrança que jamais se apagara.
A conversa, tímida de início, fluía a mais e mais ao sabor das recordações. E como outros colegas a eles se achegassem, Paula já não se sentia deslocada, e retribuía as boas-vindas com um encanto singular.
Ora, como fosse atilado, e profundo conhecedor do perigo que alguns de seus colegas representavam, Pedro Henrique tratou de mudar de carteira, indo sentar-se ao lado de Paula. Isso gerou um certo desconforto, mas não para a nova aluna, cujo sorriso maroto confessou aprovação. Foram as despeitadas que torceram o nariz, e os gaviões que se autobicaram.
Pedro Henrique estava eufórico. Ó bendita adolescência, que de tão temerária chega mesmo a cativar! Pois a paixão infantil retornara como a fúria de Krakatoa, e o sonho do matrimônio, que se desvanecera com a abrupta separação, despontava agora com um viço fulgurante.
Não havia tempo a perder; já chegara a sexta-feira! E Pedro Henrique partiu para a ofensiva. Bastaria, pensava consigo, convidá-la para assistirem ao show de uma famosa banda de rock que se apresentaria no sábado à tarde. Em meio à alegria, à descontração, acionaria seus atributos e investiria certeiro. E tudo aconteceria na maior normalidade, como devem viver os jovens.
Mas para espanto do sonhador, Paula não pôde aceitar o convite. O mundo só não veio a baixo porque a garota justificou-se dizendo ser atriz amadora de teatro infantil, e que iria encenar uma peça como protagonista, justamente naqueles mesmos dia e período.
Como percebesse que o motivo desculpava, mas não alegrava, e como crescesse o interesse por Pedro Henrique, Paula refez o convite e deixou claro que adoraria sair com ele depois da estreia; mas desde que ele a aplaudisse de coração.
Não se precisaria dizer que Pedro Henrique subiu ao sétimo céu… E selou o compromisso com um comportado beijo no rosto.
Aqui, somos obrigados a revelar que Pedro Henrique não só detestava o teatro, como também fazia questão de dizer-se cinéfilo desde o ventre materno. Mas como não fosse tolo, e estivesse perdido de paixão, não nos surpreenderíamos se, no café da manhã, defendesse a todo custo, perante o clero, o Tartufo de Molière; se, no almoço, negasse peremptoriamente o caráter artificial da dramaturgia do Nobel José Echegaray; e se, no jantar, somasse voz, com ardor, a Eugène Ionesco, quanto à preferência deste pela expressão Teatro do Insólito, em detrimento da consagrada Teatro do Absurdo.
Nosso enamorado chegou bem cedo ao teatro – foi o primeiro a cumprimentar o bilheteiro –, na esperança de avistar a sua musa. E só não conseguiu sentar no gargarejo porque os lugares já tinham sido reservados pelo elenco aos parentes mais próximos. Mas conseguiu um bom lugar na segunda fila, bem defronte ao palco. Assim, seria impossível que Paula não o visse, que não lhe percebesse o sorriso de felicitação, as vibrações calorosas, e até as lágrimas que derramaria em profusão, artifício esse já experimentado em sua casa diante do espelho, e que seria obtido com a ajuda de um colírio que trazia no bolso.
Pedro Henrique era todo expectativa. Por isso, não só o tempo demorava muito a passar, como também lhe parecia que os convidados chegavam vagarosos, procuravam os seus lugares sem a mínima pressa, e, coisa que mais o irritava, para eles se dirigiam com a agilidade dos caracóis.
Essa tortura só era amenizada quando, vez por outra, percebia que a cortina se entreabria, o que lhe revelava um olho a espreitar a plateia. E ele jurava ser azul da cor do céu…
O primeiro sinal soou. Faltavam, portanto, apenas uns poucos minutos para que as cortinas se abrissem e ele pudesse contemplar a beleza em forma de mulher, a perfeição na interpretação da atriz, o ideal com quem um dia iria se casar.
Como estivesse tomado por grande excitação, correu a comprar um chocolate, na esperança de poder acalmar-se. E retornou para o seu assento o mais rápido que pôde, momentos antes do segundo sinal soar.
As luzes da plateia se apagaram, as cortinas se abriram, a música ressoou, e os holofotes sobre o palco introduziram o primeiro ato. Era uma adaptação de O pássaro azul, de Maurice Maeterlinck, em que bichos novos seriam acrescentados ao enredo. Por óbvio que Pedro Henrique jamais ouvira falar dessa peça, e muito menos que seu autor também fora laureado pela Academia Sueca. Mas, convenhamos, isso pouco lhe importava.
Os irmãos Mitil e Tiltil contracenavam com a Fada, o Cão e a Gata havia já um bom tempo, e nada de Paula aparecer. Pedro Henrique começou a achar que o problema era com ele, que alguns de seus sentidos falhavam, pois não estava sendo capaz de identificar sua futura namorada através das maquilagens, máscaras e indumentárias.
De repente, o pé de um novo personagem apareceu por detrás de uma árvore, e começou a balançar. Os outros atores logo demonstraram repulsa, deixando claro ao público que o mau cheiro que dele provinha era insuportável.
Em seguida, passaram a uma das canções mais conhecidas da criançada: “O sapo não lava o pé. Não lava porque não quer. Ele mora lá na lagoa. Não lava o pé porque não quer. Mas que chulé!!!” E Paula saltava para o palco fantasiada de ranídeo.
O apaixonado não teve dificuldade em reconhecer sua colega de classe. No entanto, como reagir diante de um anuro quando se esperava uma princesa? Que se o beije, responderiam os peritos em contos de fadas; que se o aplauda, contraporiam os fãs de Procópio Ferreira. Mas essas e outras atitudes solucionariam apenas simples frustrações, e o estado em que se encontrava Pedro Henrique ia muito além disso.
Essa estranha disposição só fazia aumentar, e o rapaz deixava de prestar atenção na atuação de sua amada. A casca que pulava enfeitiçava-o; o anfíbio era a razão do seu incômodo!
De súbito, aquela mesma frase que ouvira na infância voltou estrepitosa. E o jovem estremeceu. Seria mera coincidência ou finalmente aquele agouro se cumpria? Afinal de contas, Paula não deixava de parecer uma menina rã. Mas, então, o que tudo isso quereria dizer? Que caminho ela lhe mostraria? Pedro Henrique não conseguia responder. E cerrava os lábios.
Mas se seus olhos permaneciam abertos, tudo ao derredor desaparecia; um como pélago se formava entre os cinco sentidos e o mundo exterior. Por isso, pouco lhe importaria saber se o final da peça – cujo original fora mantido – revoltaria ou não a mais de um espectador. Neste momento, passaram a existir, tão só, a introspecção e o ignoto.
Foram as palmas que arrancaram o pobre moço do abismo onde se precipitara. E como acontece quando se é subitamente acordado, Pedro Henrique demorou algum tempo até recobrar a razão. Em seguida, levantou-se esbaforido e aplaudiu com o máximo de entusiasmo. Mas como a aclamação da plateia já terminava, os aplausos do recém-desperto tiniram solitários por alguns segundos, os suficientes para que percebesse o mico que pagava e voltasse a se sentar, muito envergonhado.
Assim que se encontraram, abraçaram-se com muita alegria. Não se beijaram naquele momento, é verdade, pois entre o romanesco e a realidade a distância é considerável. Mas Paula recebeu os parabéns acompanhados de carícias no rosto, o que a fez corar, sorrir, e firmou um início de namoro.
No dia seguinte, domingo, não puderam se ver, pois a macarronada familiar em casa da avó de Paula ainda era tradição inquebrantável. O celular, entretanto, amenizava as saudades, pelo menos até que a nonna suplicasse a atenção da preferida entre a netalhada.
Mas a segunda-feira prometia, e a janela que se abriu ante a ausência do professor de geografia foi a oportunidade perfeita para trocarem o primeiro beijo. Daí por diante o namoro seguiu firme, o que foi um balde de água fria sobre os aspirantes a rivais.
Ocorre, porém, que ao terceiro mês de namoro, ao céu de brigadeiro assomaram nuvens derramadeiras. Com isso não quisemos dizer, como pretenderiam os precipitados, que Paula ou Pedro Henrique começasse a se interessar por outros olhos. Mas, sim, que o inusitado estava prestes a desabar…
Com efeito, na noite seguinte à troca simbólica das alianças – a paixão já alcançara esse patamar –, Pedro Henrique teve um sonho em que reviu inteiramente a cena do teatro em que Paula interpretara o gênero Rana. Isso fez com que despertasse em plena madrugada, suado e angustiado. Se o quisesse, bem que teria tempo de se refazer; bastaria que se acalmasse e voltasse a dormir. No entanto, deu brecha a que o passado retornasse, e começou a remoer aquele velho oráculo…
Ao chegar à escola sentia-se diferente, mas não atinava por quê. Procurou dar de ombros, e quase conseguiu. Todavia, assim que encontrou Paula, aquela estranha sensação incomodou-o ainda mais. E, pior de tudo, como aquele sonho se repetisse em sua mente, por mais que tentasse evitar não conseguia deixar de ver uma rã no lugar daquele rostinho angelical. É claro que Pedro Henrique disfarçou, e, como tivesse jogo de cintura, ela nada lhe notou do espanto. O problema é que por mais que se esforçasse, as metamorfoses persistiam, tal como se obsedado estivesse. Daí que os dias se seguiram; as rãs não sumiram; as evitações se tornaram mais frequentes; e o relacionamento enfim se acabou.
Outros amores sobrevieram no colégio, e outros mais na faculdade de engenharia. Mas Pedro Henrique só se casaria depois que terminasse a pós-graduação, condição necessária a uma vida mais estável, segundo pensava.
Por sorte, a linda morena que cursava arquitetura no campus adjacente, e cujos encantos nocautearam o espírito do terceiranista, também era da mesma opinião, o que concorreu para um namoro sem pressa nem pressões.
Aqui também somos obrigados a apontar uma outra cutucada na ferida de Pedro Henrique. Mas, calma! ao contrário do que acontecera com Paula, o rosto de Cássia (era o nome da eleita) não se transmudou em nenhum Leptodactilus ou outro monstrengo semelhante. É que, como o namoro se tornasse sério, o quase engenheiro foi devidamente convidado pelos pais da futura noiva a ir jantar em sua casa, a fim de que, entre a entrada e o prato principal, explicasse suas reais intenções. – Concordamos que para muitos essa exigência pode ser considerada ultrapassada. No entanto, o velho Manuel não media esforços para proteger a sua única filha.
Só que o pai de Cássia, que jurava ter sido japonês na última encarnação, impunha aos visitantes que tirassem os sapatos para que entrassem em sua casa. Pedro Henrique fora informado a tempo desse costume por sua namorada. Mas a ansiedade, a expectativa… e dele se esqueceu. E quando se viu obrigado a cumprir o ritual, lembrou-se que suas meias estavam furadas, o que deixava os dedões indiscutivelmente à mostra.
Por pouco e Pedro Henrique não deu meia volta e partiu. Cássia o conteve, afirmando que se usasse dessa justificativa para ir embora, seu pai não só não acreditaria, como também passaria a enxergá-lo como uma possível ameaça à saúde familiar, e o relacionamento entre ambos começaria com o pé esquerdo, tivesse ou não calçado meia, estivesse ou não furada.
Enfrentada, assim, a situação vexatória – “… afinal entendera que o que não tem remédio está remediado,” como escrevera Júlio Ribeiro, em A carne –, restou a Pedro Henrique encarar a cutucada que lhe preparara o destino: uma monumental coleção de sapinhos, o orgulho da dona da casa.
Como simpatizasse com o genro em potencial à primeira vista, a anfitriã, que não se fez de rogada, desmanchou-se em explicar que cada um lhe trazia uma determinada lembrança, e que, por isso, era difícil apontar qual deles era o predileto. Ocorre que Pedro Henrique já se julgava imunizado dos efeitos colaterais que os tetrápodes de pele nua lhe causavam. Ledo engano. Daí que não seria difícil deduzir que se recordações havia, tocavam menos à sua proprietária do que ao tremente universitário.
É fato que as sequelas não foram tão agudas quanto as do tempo do colégio, mas nem por isso deixaram de causar um certo desconforto, a exemplo de quando foi convidado a comprovar os dotes culinários de Cássia – ela mesma preparara sushis e sashimis e os arrumara caprichosamente sobre uma barquinha de madeira. Ora, ao invés de se limitar ao momento, sorvendo da comida e dando asas à conversa, Pedro Henrique deixou que um e outro sapinhos daquela coleção se lhe retornassem aos olhos. Isso foi suficiente para que perdesse o foco, o que o levou a meter goela abaixo não uma daquelas iguarias, mas uma bolota considerável de pasta de raiz-forte. Que se imagine o pastelão que se seguiu! A procura por água foi o menor dos problemas, visto que, no desespero, desequilibrou-se da cadeira e tombou, mas não sem tentar se agarrar ao que podia, o que fez puxar a toalha da mesa e desabar tudo o que sobre ela havia.
Menos mal que, depois de apagado o incêndio e recomposta a compostura da melhor maneira possível, seu Manuel não se aguentou e, deitando ao chão pela primeira vez o seu sempre comedimento, desfez-se em fragorosas gargalhadas, o que abriu brecha a que todos rissem. Pronto, Pedro Henrique perdia boa parte das suas papilas gustativas, mas a família Salgado ganhava um novo membro, um genro para lá de desastrado.
Pedro Henrique e Cássia se formaram no mesmo ano, mas em datas distintas. Esta trilhou as veredas do MBA; aquele partiu para o mestrado. E ambos trabalhavam, estudavam, economizavam e sonhavam com um apartamento pequeno, mas repleno de alegrias. Quando a profissão e o financeiro enfim se deram as mãos, o casal resolveu marcar o casamento. Esse seria o caminho normal e o único aceito pelo pai de Cássia. A verdade, contudo, e que nunca seria revelada ao velho Manuel, é que o teste de gravidez dera positivo.
Quando Cássia foi fazer o seu primeiro pré-natal, e como demorassem para entrar no estacionamento, pois a fila era grande e os manobrista, poucos, Pedro Henrique olhou para fora e comentou com repúdio a cena comum:
– Veja só, amor, aquela mulher explorando a credulidade alheia. Dá para aguentar uma coisa dessas?
Só que, antes mesmo que Cássia comentasse, seu marido fixou naquela vetusta e carcomida senhora um olhar indagador, e, pasmem, reconheceu aquela cigana de outrora, a que um dia lhe profetizara. Esta, sabe-se lá como, sentiu que era observada, e, virando-se para Pedro Henrique, e forçando mais ainda os próprios olhos, também distinguiu aquele menino curioso de antanho. E sem poder evitar, foi-lhe logo gritando:
– Aproxima-se o dia! Não se esqueça, a menina rã te mostrará o caminho! – E tornou à consulta como se nada tivesse acontecido.
Atordoado com o que ouvira, Pedro Henrique buzinou e conseguiu passagem com a desculpa de que sua mulher passava mal. Foi mais fácil para ele justificar essa atitude do que ter que explicar o que acabava de ouvir.
É evidente que inúmeros foram os pensamentos que remoeram o juízo de Pedro Henrique. Mas o mais inquietante deles tinha a ver com o feto. Em vão Cássia lhe mostrava os resultados das ultrassonografias, pois por noites a fio teve pesadelos de que a criança nasceria com as feições raninas, a exemplo dos que vêm ao mundo com aspecto simiesco.
Mas os meses transcorreram independentemente da aflição de quem quer que seja, e Pedro Henrique alternativa não teve senão a de se apaziguar. De modo que, depois de presenciar o último ultrassom e constatar a perfeição de sua filhinha, nada mais o perturbou, incluindo os pesadelos. Bem, para sermos francos, um só incidente o levou à destemperança, e, mesmo assim, foi de pouca duração: Cássia lhe reportou a sugestão de suas primas – as mesmas que lhe foram a causa do bullying –, de que pendurassem à porta do quarto da maternidade um quadro que retratasse um cenário campestre, em que o nome da recém-nascida, Ana Cláudia, ficaria rodeado não por flores e abelhinhas, mas, sim, por meia dúzia de pererecas.
É claro que a sugestão não passara de uma pilhéria, com o só intuito de relembrarem o episódio hilariante das férias que se foram. E Pedro Henrique até que se riu disso, procurando demonstrar que não guardara ressentimentos. No entanto, e bem lá no fundo, enviou-lhes este singelo pensamento, nada louvável, diga-se de passagem:
– Espero que morram encalhadas.
Ana Cláudia nasceu saudável, cabeluda e com os olhinhos já abertos. Para o pai, tinha o seu rosto; para os sogros, o semblante de Cássia. E na visão deste narrador, o semblante universal – cara de joelho. Mostraram-lhes, ademais, um pequenino hemangioma na perninha esquerda.
– Ufa!… – E o pai se deixou largar sobre a poltrona, tranquilizado, depois que verificou que a marca de nascença só lembrava um quarto crescente.
A vida do casal mudou profundamente, sobretudo nos dois primeiros meses, quando todos somos submetidos a um verdadeiro teste de resistência. Esse período, aliado à famosa desculpa da conjuntura econômica, pesaram bastante para que desistissem de um segundo filho.
Mas os anos passam. E em que pese a alegria reinante no lar, é a própria criança que acaba pedindo um irmãozinho, pouco se lhe importando se os pais conseguiram ou não enriquecer. Daí que aquilo que parecia absoluto demonstrou-se relativo, se bem que mais a Cássia que a seu marido.
E tanto insistiu a menina que seus pais acabaram concordando em que a família aumentasse. Ana Cláudia ficou radiante! E na pureza dos seus cinco aninhos concluía que se conseguira o mais, um irmãozinho, o menos, um bichinho de estimação, seria ainda mais fácil de obter. Assim, aproveitou o momento e emendou:
– Posso ter um cachorrinho?
– Não. – responderam em uníssono.
– E um sapinho?
– Não! – Pedro Henrique respondeu com maior ênfase.
Passaram-se três meses, e nada de Cássia engravidar. De primeiro, Pedro Henrique e a esposa acharam que a ansiedade os estava atrapalhando. E, realmente, outro não era o escolho, pelo menos foi com o que ambos os sogros concordaram. Ora, como as férias do casal coincidiam, e estavam próximas, e como era um sonho recíproco o de conhecerem a Disney, combinaram com os respectivos avós que cuidassem da neta enquanto viajassem. E para que ninguém ficasse melindrado, Ana Cláudia ficaria cinco dias em cada casa. – nada como direitos e deveres iguais para que a harmonia familiar seja mantida.
Foi difícil a decisão de se separarem de Ana Cláudia por esse período. Mas, pensavam, se a intenção era ficarem a sós, descansarem e se amarem, o sacrifício a que se submeteriam valeria a pena. Até porque, a frequência com que a menina lhes cobrava o irmãozinho aumentara bastante nas últimas semanas, o que os angustiava ainda mais. Além disso, haja criatividade para desculpar D. Cegonha, que, no singelo entender da pequerrucha, precisava ser aposentada e substituída por uma ave mais dinâmica.
O casal partiu para Orlando. E se os olhos dos pais marejaram lágrimas na despedida, Ana Cláudia era-lhes só sorrisos. Afinal, ela bem sabia que passaria alguns dias nas casas daqueles que, mesmo a contragosto dos pais, nada lhe recusavam, fossem os doces, os banhos de banheira demoradíssimos ou o ir dormir além da hora marcada.
É claro que, mesmo divertindo-se além do esperado – e eles mais pareciam dois adolescentes em excursão de conclusão de curso –, tanto Cássia quanto Pedro Henrique não deixavam de arranjar tempo para ligarem e saberem da filha. No entanto, como andassem quilômetros dentro dos parques, chegavam à noite no hotel mais mortos do que vivos, e, por conseguinte, disposição é o que não lhes sobrava à excelsitude da concepção.
Assim, depois de cinco dias de passeio, e de cinco parques exaustivamente aproveitados, coube ao casal uma conversa consciente, o que os levou a temperar a diversão com o amor.
Terminadas as férias, e o reencontro com a filha foi sublime. Pedro Henrique e Cássia não se aguentaram e choraram juntos; e ao contrário do que poderiam supor, esta menos do que aquele. – ó estereótipo do sexo frágil! Os Salgado foram os que a levaram ao aeroporto. Em seus semblantes, além da alegria indizível de reverem a filha amada, uma sutilíssima e contida interrogação se denunciava no canto dos olhos… coube à mãe de Cássia perguntar-lhe, no primeiro momento em que ficaram a sós, se a viagem tinha sido frutífera, se tudo tinha dado certo.
Mas como Cássia estivesse enlevada com a presença de Ana Cláudia, e como ainda se encontrasse extasiada pela experiência na terra where dreams come true, ela não conseguiu captar a profundidade da pergunta que sua mãe lhe fizera. Foi quando seu pai, que a tudo ouvia, sem que disso se dessem conta, abandonando pela segunda vez o seu comedimento, tratou de perguntar em alto e bom português:
– Encomendaram ou não mais um neto?!
A par dos tossidos da interrogada, e Cássia conseguiu responder que, se Deus quisesse, os Salgado teriam mais um netinho para mimar e ver crescer.
A alegria só não se prolongou porque Cássia menstruou ao final do período normal.
A vida deveria seguir, portanto. Mas precisavam continuar tentando, pois a vontade de serem pais só aumentava.
Como sempre, Ana Cláudia se via recoberta de zelos. Por isso, seus pais sempre se preocuparam com o conteúdo dos programas de televisão que a deixavam ver. Tinham um carinho especial pelo Sítio do Picapau Amarelo, pois, quando crianças, também se encantaram com as histórias de que participavam seus personagens. Para Pedro Henrique, Pedrinho era o herói que idealizava; e para Cássia, a menina do nariz arrebitado era a irmã mais velha que sempre desejou ter. Era-lhes um momento único, mágico! Por isso, a versão atual por vezes perdia para o saudosismo. Não se cansavam de dizer, por exemplo, que a nova Cuca nem se comparava àquela que lhes marcara ao coração – gorducha e desengonçada, mais jacaré que ser humano. A Emília continuava com a torneirinha de asneiras escancarada, com o rostinho e roupagem eminentemente brancos, e com os cabelos de cores variadas. Mas, admitiam, a de agora era muito mais graciosa e sapeca. Fosse como fosse, o momento em que a família conseguia se reunir para assistir ao Sítio era de dar graças, pois pai, mãe e filha se divertiam, comentavam e até inventavam o final dos próximos capítulos, mas sempre ao gosto de Ana Cláudia.
Em uma dessas noites, antes mesmo do término do episódio, Pedro Henrique se lembrou de que vira exposto à venda, num sebo próximo ao seu trabalho, a coleção completa da famosa obra de Monteiro Lobato. Ora, como tinham o salutar hábito de lerem historinhas para a menina, quando da hora de dormir, a sugestão de adquiri-la foi aceita com entusiasmo pelas mulheres da casa. Então estava combinado: no dia seguinte ele iria àquela livraria e compraria tudo. Torciam, no entanto, para que ninguém mais tivesse tido a mesma ideia.
Pedro Henrique ficou muito feliz quando, voltando ao sebo, lá reencontrou a coleção. Examinando-a, viu que se tratava de uma raridade, uma edição de 1944, da Editora Brasiliense. E como não contivesse o vivo interesse, o proprietário disso abusou, salgando-lhe o preço. Mesmo assim valeria a pena qualquer esforço para ver sua filhinha se embevecer com as peripécias contadas a miúde, se bem que, como já percebia, muitas das palavras e expressões deveriam ser devidamente adaptadas.
Essa novidade causaria enorme alegria ao lar do jovem casal, não fosse Pedro Henrique ter sido recepcionado por uma notícia, nada animadora: passadas quatro semanas, e o fluxo menstrual descia.
Aconselhada por amigas, e estimulada por toda a família, Cássia resolveu consultar a ginecologista. Os exames foram marcados, feitos, e só lhe restava aguardar.
Já de posse de todos os resultados, marcou-se o retorno. Quando sua médica os examinou, nada constatou de anormal. Ora, ou o problema estaria em Pedro Henrique, ou um bloqueio nela se formara por motivos de ordem psicológica.
Pedro Henrique não hesitou em ir consultar com seu médico, que de imediato o encaminhou a um especialista. Por seu turno, Cássia aceitou se submeter à terapia, mas desde que nada estivesse de errado com o marido.
Os resultados atestaram que Pedro Henrique esbanjava saúde, fertilidade. E Cássia alternativa não teve senão a de iniciar o tratamento.
As semanas se iam, e faziam-se meses. E Cássia não engravidava. Como a angústia só aumentasse, seu psicólogo achou por bem levantar a hipótese da adoção. O profissional, então, passou a explicar que em mais de uma vez tratara mulheres com o mesmíssimo problema, e que elas só conseguiam engravidar depois que adotavam uma criança. O problema se resolvia naturalmente, como se o obstáculo psicológico à gravidez sumisse assim que a abnegação falasse mais alto. E arrematava afirmando ser a literatura médica farta desses exemplos, que só faziam confirmar o acerto da escolha.
Cássia era pega de surpresa; nunca sequer cogitara de adotar uma criança! Não que descartasse esse caminho, pois o instinto maternal, sublime que seja, jamais negaria o regaço a um anjinho em penúria. No entanto, ainda lhe restava a inseminação artificial. Essa opção, que lhe veio à mente antes que participasse ao esposo o ato sublime, Pedro Henrique a aceitou de bom grado, e a adoção se foi ao limbo, quieta e obscura.
Passaram ao novo procedimento. O que conseguiram? Um rombo no orçamento familiar, haja vista o valor estratosférico de cada tentativa (e só fizeram uma), e uma amargura tamanha que ambos até pararam com as leituras noturnas para Ana Cláudia, pois que bastante desestimulados.
Pedro Henrique ainda foi contemplado com uma nova séria de idênticos pesadelos, em que incontáveis rãs invadiam a clínica de fertilização, e, depois de abocanharem todos os óvulos fertilizados que lá se encontravam armazenados, arrumaram-se como em um coral e puseram-se a repetir aquela velha e agourenta vaticinação. Disso não teve dúvida, pois se os coaxos começaram distorcidos, logo se tornaram perfeitamente compreensivos, haja vista a ajuda de uma determinada espectadora – aquela malfadada cigana.
Cássia não teve pesadelos, mas passou a chorar com mais frequência. Isso não só fez sangrar o coração do marido, como também repercutiu em um outro coraçãozinho…
Mas dizem que há males que vêm para bem. Pois foi justamente esse sofrimento que fez ressurgir a ideia da adoção. E como tivesse a certeza de que o marido a ela se juntaria em viva alegria, Cássia só esperaria que chegasse e que se pusesse receptivo, para, então, compartilhar-lhe o venturoso caminho.
Tão logo viu Pedro Henrique à vontade, e isso se deu depois de se escarrapachar no sofá, tendo Ana Cláudia junto de si, a brincar com bonecas, Cássia dele se aproximou. É claro que o esposo percebeu-lhe a mudança, pois sua mulher deixava a tristeza e se revestia da mais pura alegria. São essas mudanças, pensava consigo, que fazem bem a um recém-chegado.
E como sentisse que algo havia por detrás daquela aura luminosa, Pedro Henrique se endireitou, e, fitando a esposa, disse em voz mansa e pausada:
– O que é que você está querendo me dizer?
Cássia sentou-se ao seu lado, uniu os dedos, e, com idênticas mansidão e pausa, contou tudo o que seu coração ordenava,
Pedro Henrique ouviu calado; não sorriu nem franziu as sobrancelhas. Essa alternativa, já a esperava de sua mulher há algum tempo.
E como a fitasse com um olhar que beirava o impassível, Cássia retorquiu, abandonando o entusiasmo:
– Fala alguma coisa. Não gostou da ideia?
Pedro Henrique respondeu que não estava surpreso; que também já pensara nessa hipótese, e que, se fosse a que sobrasse, já a aceitara de boa vontade.
Cássia ficou eufórica! E só não pulou de alegria porque ouviu-lhe em seguida três condições: a criança, fosse menino ou menina, deveria ter no máximo um ano de idade; teria que ser da raça branca; e jamais poderia saber que tinha sido adotada.
Cássia emudeceu. Se por um lado sorria por dentro, pois que o marido concordava com a adoção, por outro, entristecia-se, pois não o sabia tão preconceituoso.
E como não quisesse se arriscar a perder o que conseguira, Cássia meneou a cabeça, deu um sorriso amarelo, e aceitou a contraoferta à voz resignada.
No tempo oportuno, o casal chamou ambas as famílias para um jantar em sua casa, e lhes comunicou a decisão; não esquecendo, porém, de frisar-lhes as condicionantes. Essas restrições a todos impressionaram, mas, por uma questão de boa política, não houve quem ousasse criticar. Ademais, quando os avós olharam para Ana Cláudia e viram que a menina não cabia em si ante a ideia de finalmente ganhar um irmãozinho, simplesmente abafaram toda e qualquer prevenção. E ela repetia para quem quisesse ouvir:
– Até que enfim D. Cegonha resolveu trabalhar! – e todos riam a bom rir.
Interessante mencionar que, uma vez restabelecida a alegria, recobrava-se o entusiasmo pelas leituras noturnas, e Monteiro Lobato tornou a embalar a imaginação da Ana Cláudia. Ora, como os trâmites legais à adoção não costumam primar pela agilidade, os pais da pequenina conseguiram concluir a leitura de bem mais de um livro. No entanto, e aqui mais um fato inexplicável se faria notar aos de fora, um determinado volume daquela coleção era sempre por eles desconsiderado, como se uma força poderosa, e muito convincente, adiasse-lhes o conteúdo para um momento oportuno.
Apesar desses mistério e demora procedimental, determinou o destino, diriam uns, quis o acaso, profeririam outros, ou arranjou a Providência, sentenciariam outros mais, que um bebê chegasse àquele lar. A paixão foi instantânea; se bem que Ana Cláudia tivesse ficado um pouquinho decepcionada, pois tinha certeza de que D. Cegonha lhe traria um irmãozinho.
Como Ana Cláudia sequer admitira a hipótese de uma irmã, e como seus pais acreditassem em tanta convicção, o nome que a menina escolhera teria que ser necessariamente mudado. Ora, como preferissem os compostos, Ana Paula e Ana Maria foram os apresentados à pequenina juíza. Pois não é que Sua Excelência resolveu contrariar essa diretriz? E não houve quem lhe demovesse a decisão. Ficou Beatriz, e nada mais.
Beatriz era um nenê de dar inveja. Linda, sorridente, cabeluda! Apesar de todo esse encantamento, fora abandonada em uma caixa de papelão sem o menor arrependimento, aquecida tão somente por um cobertorzinho fuleiro. E não errariam os que apostaram na Providência como causa dessa feliz união, pois somente ela conseguiria aguçar a audição de um gari em plena hora do rush, segundos antes de ele mover a alavanca que acionaria o compactador de lixo do seu caminhão!
O tempo seguia o seu caminho, e a felicidade reinava nos corações dos pais de Ana Cláudia. Mas em uma tarde, quando Pedro Henrique se derretia contemplando as irmãs que dormiam próximas uma da outra, e Cássia entregava-se ao sono profundo no quarto contíguo, um aperto rondou seu coração. Era uma sensação confusa, insondável, e que se foi avolumando até se tornar quase um ferrete. O pai, então, se sentou na poltrona de amamentação e passou a respirar profundamente. E repetiu o exercício até que recobrasse o prumo. O que lhe sobrava? Uma torrente de dúvidas. Mas como nenhuma resposta lhe viesse naquele momento, resolveu dar de ombros e voltou para junto de suas filhas. Fixando-as, começou a divagar… Beatriz vendia saúde; o ciúme da primogênita apenas começava; o período de cólicas na caçula já passara; os empregos estavam garantidos, sólidos… Foi quando uma ligeira diferença entre ambas tomou vulto em seu espírito – mesmo sendo da raça branca, Bia era um pouquinho mais morena.
Essa diversidade, elucubrava, poderia se acentuar com o passar dos anos, bem como outras nuanças que o tempo acabaria revelando. E isso traria questionamentos à sua filha. Beatriz começaria a se perceber, a notar-se diferente da irmã! Daí a perguntar aos pais se tinha sido adotada não demoraria muito. E como esconder-lhe a verdade se as marcas poderiam ser gritantes?!
– Meu Deus!… – Pedro Henrique estremeceu. E os efeitos perduraram em seu âmago pelo resto do tarde.
Cássia de nada suspeitou. Mas só Deus sabe quanto esforço ele dispendeu para ocultar-lhe a angústia que o remoía.
De vez em quando, e como a procurar tranquilizar-se, Pedro Henrique afirmava para si que Beatriz jamais desconfiaria, pois a diferença que notara na cor da pela fora apenas ilusória, fruto do lusco-fusco no quarto das crianças. De quando em vez, nem a mais firme convicção o apaziguava, e ele já via a caçula revoltada consigo, com o mundo, porque era adotada, filha de uma qualquer que a abandonara em uma misérrima caixa de papelão. Quem sabe daria mais valor ao gari que a salvara do que a seus pais que a cobriram de amor? E se cismasse em conhecer os seus pais de sangue? E se os encontrasse?! Preferiria-os aos que a criaram como filha? As respostas não vinham; e a tortura se intensificava.
Mas a vida continua o seu rumo quer queiramos quer não, e melhor é seguir andando do que se demorar no abatimento. Por isso, concluía Pedro Henrique, o melhor que tinha a fazer era retomar os seus afazeres, o seu dia a dia, e deixar de vez das caraminholas que só fazem mesmo é enrugar.
Pois foi o que fez. E como já se aproximava a hora da família se recolher, Pedro Henrique resolveu começar por um dos quefazeres que mais lhe dava prazer – ler para a filha o Sítio do Picapau Amarelo.
Pois desta vez o inusitado se faria: aquele mesmo volume que sempre desconsideraram, A reforma da natureza, imprimia-se agora de uma atração irresistível, sendo que o mesmo fenômeno aconteceria a sua mulher
Espantos à parte, noite após noite revezavam-se os pais naquela leitura. E Ana Cláudia se encantava a mais e mais a cada página dobrada.
Certa noite, em que a lua cheia resplandecia sobremaneira, o céu transbordava de estrelas, Cássia tomava banho e Ana Cláudia aguardava quietinha o continuar da história, Pedro Henrique começou a leitura com uma sensação incomum, misto de doce mister com inquietante pressentimento. Lá pelas tantas, e isso coincidiu com o primeiro bocejo infantil, aquela velha profecia voltou-lhe à mente com uma clareza fora do comum: “A menina rã te mostrará o caminho.” Ele engasgou, estancou na frase que lia, um tanto revoltado, e ficou em silêncio. E dentro de si uma percepção se formava:
– Emília vai reformar a natureza com a ajuda de uma amiguinha carioca de onze anos, com quem vinha se correspondendo. E por ser muito magra, a boneca acabou lhe dando o apelido de rã. Interessante…
Ana Cláudia, percebendo que seu pai parara de ler, recobrou mais um pouco da vigília e pediu para que continuasse. Ele prosseguiu. E foi quando seus olhos se detiveram neste parágrafo, que leu devagar, ao mesmo tempo em que engelhava a testa:
“Algum sonho lindo devia andar reinando na cabeça da Emilia. A avaliar pelo sorriso de enlevo que animava o seu rostinho moreno – moreno claro. ‘Nem isso as outras meninas sabem’, pensou consigo a Rã, ‘que a Emilia é moreninha côr de jambo. Nem sabem que tem cabelos castanhos – castanho escuro’,”
A primeira reação que Pedro Henrique teve foi a surpresa. A segunda, um enorme desapontamento. Ora, desde criança a televisão sempre mostrou Emília como uma bonequinha de cabelos multicoloridos, de cores alegres, gritantes, e de rosto e pele bem alvos. Mas a personagem que Monteiro Lobato imaginara, descrita por intermédio da Rã, era completamente diferente! Para o autor, ela era “moreninha côr de jambo”. E os cabelos, castanho-escuros. Nada a ver, portanto, com o modo com que sempre a retrataram na televisão, fosse nesta ou na versão anterior. Nada de cabelos colorido-gritantes, muito menos de rosto e pele brancos, com ou sem sardas.
– Mas que coisa!… A gente cresce acreditando que a Emília era de um jeito, e depois de anos percebe que aquilo não passava de uma miragem, que não se respeitou nem a vontade do autor! E foi preciso ler o original para se saber que a verdade era bem diferente.
Nesse exato momento, porém, à decepção somava-se a voz profética da cigana – “A menina rã te mostrará o caminho.” E Pedro Henrique refletia:
– Espera um pouco… A rã da história é uma menina; é uma menina rã!… E se isso estiver realmente acontecendo, se tudo não passar de uma grande coincidência, então será ela quem me mostrará o caminho! – e relia afoito o período, buscando desvendar algo a mais.
Não foi preciso muito tempo para que as ilações começassem: se ele ficara tão espantado, e ficava tão desapontado com a verdade que descobrira por acaso, por meio de uma simples leitura, quão atônita e decepcionada poderia ficar Beatriz se desde cedo não lhe contassem a origem? Se viesse a saber que era adotada não pela fala espontânea de seus pais, como deve ser, mas, sim, pela força das coisas, pela boca de outrem, pelos traços distintivos que fatalmente surgiriam, qual o tamanho da desilusão a que Beatriz poderia se entregar?
Essas indagações ferretearam tão ferozmente o coração de Pedro Henrique, que ele fechou os olhos e se recusou pensar em outras mais.
Não obstante, ele percebia em seguida, e de forma cristalina, que se insistisse na omissão – se deixasse de explicar à própria filha, e da forma a mais natural e clara possível, que se ela não nascera do ventre de Cássia, fora por ela recebida em seu seio com o sublime amor de mãe –, o preço que teria que pagar seria altíssimo, arrepiante, destruidor!
Restava ainda o final do vaticínio para ser decifrado. Nesse ponto, Pedro Henrique pediu desculpas e agradeceu em pensamento àquela encanecida cigana, pois finalmente compreendia, e a bem de sua filha, que só lhe restava um único caminho a percorrer: o da sinceridade; sem receios, melindres ou preconceitos.
Pedro Henrique passou a refletir sobre como um despretensioso trecho de uma história – em que figurava uma menina rã! –, teve o poder de abrir-lhe os olhos. E suspirou longamente. Fechou o livro e o colocou sobre o criado-mudo. Em seguida, agasalhou a filha sob as cobertas e lhe desejou boa noite com um beijo na testa. Levantou-se e foi ter com a esposa. O assunto de que tratariam? Um caminho reto, plano e luminoso.
Dias Campos
diascampos1@gmail.com

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