Como não aguentasse mais acordar descadeirado, Raul decidiu ter uma conversa muito séria com o seu perseguidor.
Mas ao contrário do que se imagina, esse verdugo está longe de ser confundido com o grandalhão que atormenta um nerd ou com o psicopata que corre atrás da sua vítima.
Em outras palavras, a conversa não se daria de homem para homem, mas, sim, de homem para pesadelo.
Sim, Raul discutiria com o seu insistente pesadelo; que, por sinal, não é do tipo em que monstros atormentam pessoas, nem o em que desavisados caem em um precipício.
Na realidade, é bem mais ameno do que aparenta. Mas, nem por isso, menos causticante.
Raul vê-se em uma sala de aula repleta de alunos. Todos estão sentados e prestes a iniciar a prova. Ele olha para as questões. E como faz décadas que concluiu o antigo colegial, é óbvio que não se lembra da matéria que é objeto das questões. Daí começa a rabiscar, a enrolar, a tentar colar de alguém. E como o tempo voa, e falta pouco para recolherem os exames, acaba acordando assustado e alquebrado.
É certo que, de vez em quando, ocorrem ligeiras variações. O exemplo mais recente foi quando Raul resolveu varrer com os olhos toda a classe, na esperança de encontrar Freud ou Jung, e de lhes pedir ajuda.
Mas como esses mestres, por certo, tinham coisas mais interessantes para fazer,seja no mundo onírico, seja no empíreo, Raul não teve alternativa senão a de se sujeitarà mesma tortura.
Sendo assim, e como não houvesse mais o que fazer, Raul chamou para junto de si o seu pesadelo, a fim de entabular conversação.
Mas para que o clima não azedasse logo de início, ele resolveu começar comamenidades. E indagou como ia a família, qual a viagem de que mais gostou, se era alérgico ao ácido acetilsalicílico...
O danado respondeu a todas as perguntas. E ao contrário do que Raul imaginava,não foi sarcástico nem enrolador, falando de forma sucinta e civilizada.
Esse “automatismo” nas respostas deixou Raul um tanto contrafeito. Mesmo assim, não deixou de passar a palavra ao pesadelo, a fim de que perguntasse o que bem quisesse.
O pesadelo, então, indagou por que Raul queria vê-lo pelas costas.
O questionado arregalou os olhos, enrugou a testa, e deixou cair o queixo.
Ora! Faça-me o favor! – retorquiu Raul – Como dizer a uma pulga que ela é desnecessária? como convencer um pernilongo de que ele não faz falta? como mostrar aum ácaro que melhor seria se ele não existisse? como explicar a um pesadelo que a vida seria infinitamente mais saudável se ele fosse embora para nunca mais voltar?!
Mas como o pesadelo permanecesse impassível, o jeito foi Raul recompor-se para tentar persuadi-lo do óbvio.
Ocorre que essa impassibilidade deixou Raul furioso!
Essa fúria, contudo, converteu-se em ousadia. E saiu a passo firme em direção à biblioteca.
Depois de alguns segundos procurando, reencontrou Manuel Bandeira.
Folheou, achou o que buscava, e sorriu de satisfação.
Quando Raul virou-se, tomou um baita susto! O pesadelo tinha-o seguido.
Pois Raul não titubeou. Sentou-se calmamente na poltrona, e o encarou.
Essa repentina mudança de espírito, de perseguido para afrontador, não deixou de abalar o pesadelo, que perguntou se no livrinho compulsado havia alguma fórmula, sortilégio ou poção mágica que fosse tão forte a ponto de impedir a perseguição.
Raul deixou transparecer um leve sorriso. Em seguida, questionou-o sobre sesabia ler.
O inquirido levantou a sobrancelha direita. E com um desdenhoso meneio de cabeça, respondeu que sim.
Raul virou-lhe o livro, aberto na página que encontrara, e pediu que fizesse a gentileza de ler os dois primeiros versos de Vou-me embora pra Pasárgada.
O declamar não poderia ter sido mais doloroso aos seus ouvidos!... Mesmo assim, Raul agradeceu e continuou a encará-lo.
Como não entendesse o que acontecia, e porque não identificasse nada que o pudesse deter, o pesadelo quis saber o porquê de tanto rodeio.
Raul respondeu, à voz pausada, que o poder para afastá-lo não estaria,propriamente, na estrofe, mas, sim, na ilação que dela fariam.
O pesadelo encrespou as sobrancelhas, em confessável atitude de desconfiança, e perguntou qual o rumo que a prosa teria.
E com a calma dos que sabem blefar, e dos que sempre gostaram de estudar mitologia grega, Raul disse que assim como o viajante daquele poema iria embora para Pasárgada, pois lá era amigo do rei, assim ele, Raul, também viajaria, só que para Demos Oneiroi, a Terra dos Sonhos, pois naquelas bandas, era ele o amigão domandachuva, do deus Ícelo, a personificação dos pesadelos.
Deu para perceber um levíssimo tremelique na pálpebra inferior esquerda do pesadelo, fato revelador do estrago que essa ameaça causara à espinha dorsal da sua pseudo-onipotência.
Só que o estocado contra-atacou dizendo que Raul blefava, pois nunca ouviu falar que um mortal pudesse ir ao encontro daquela potestade.
Raul concordou. Mas emendou que também nunca tinha ouvido falar que um ser humano pudesse conversar com o seu pesadelo. E se isto estava acontecendo, por que aquilo seria impossível?
Neste exato momento, o pesadelo começou a rarefazer-se, como se um poder infinitamente superior o estivesse vaporizando. E extinguiu-se por completo.
Seria de se esperar que, terminado esse duelo fantástico, Raul acordaria de súbito, suarento e fatigado, revelando que tudo não passara de um sonho embolado, encoberto pelos fluidos enfadonhos do lugar-comum.
No entanto, e como foi colocado no início, Raul já tinha acordado há um bom par de horas.
Seja como for, Raul só saberá se seu blefe deu certo à noite, quando cair no sono.
Até lá, o melhor que tem a fazer será ler um bom livro, almoçar e jantar frugalmente, e deixar de matar saudades com o álbum da escola.
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